top of page

Primavera de Marta - Mensagem do dia 29.07.2022



Em tempo algum o prazer foi tão buscado como nos dias que ora atravessamos. Cercado de facilidades de toda ordem, o ser humano tem dificuldade em aceitar a interferência da dor no seu cotidiano, e tudo que tisne ou embarace o prazer deve ser evitado ou conjurado.


Na mitologia grega, a deusa Hedonê, filha de Eros, deus do amor e de Psiquê, divindade vinculada aos mistérios da alma. Era possuidora de uma beleza incomum, capaz de atrair admiradores de muito longe, que vinham ao seu exótico país somente para sua admiração pessoal. Inicialmente, vincularam-na especificamente ao desejo sexual, mas essa capilaridade foi combatida por diversas escolas filosóficas, como a dos estóicos, que a tinham como uma má divindade. Outras correntes de pensamento a adotaram, como os hedonistas, atribuindo-lhe interferência em áreas outras que não somente o erotismo. Os romanos, posteriormente, a identificaram pelo nome de voluptas, com as mesmas atribuições emprestadas pelos gregos.


Seja como for, está presente hoje sob diversas formas e denominações. Pessoa alguma que deseje a sua ausência (do prazer), salvo os masoquistas ou possuidores de transtornos da afetividade, mergulhados em graves eclipses da razão e dos sentimentos.


O prazer etílico, experimentado até a corrosão do tecido hepático, levando o indivíduo à morte. A perseguição do prazer sexual, onde o seu escravo mobiliza todas as energias para estar sempre em contato com as poderosas forças do deleite de alcova.


O prazer gastronômico, onde as barreiras das austeridades para com o estômago são ignoradas, levando o glutão e sua ansiedade mórbida a estados lastimáveis de destruição do carro orgânico.


O prazer da posse de coisas, criando um novo distúrbio, ora classificado pelas ciências investigativas da alma e do comportamento como síndrome do acumulador, impossibilitando o seu portador de uma convivência saudável em meio social e familiar.


E muitas outras formas de prazer se apresentam ao Espírito, ora em atuação no mundo, alguns profundamente danosos ao discernimento e verdadeiros entraves à libertação do ser das amarras e dos grilhões da matéria.


Nenhuma censura ou crítica nessa busca que move bilhões de vidas, mas é de se refletir se aquilo que dá prazer é moralmente aceitável e existencialmente viável para a construção de valores imperecíveis da alma. Por mais dilatado que seja um instante de prazer, chega sempre um momento em que cessa, permitindo instalação do império da razão para que o ser possa ajuizar o valor das próprias atitudes, assumindo as consequências derivadas de seus atos. Observemos em derredor de nós milhões de crianças, órfãs de pais vivos, que se recusam a assumir esses filhos, olvidando que eles foram concebidos sob intenso prazer, conquanto passageiro.


Anotemos as milhares de pessoas que se valem diariamente do álcool para se sentirem estimuladas ou mergulhadas no prazer, ignorando que a paulatina martelada etílica oportunamente enviará fatura aos órgãos atingidos, não raro degenerando para a cirrose destruidora.


O prazer da posse que a muitos alucina deixa escuros traços de loucura e alienação nos onzenários invigilantes, que abandonam o corpo em estado febril de elevada ansiedade, sedentos por carregar aquilo que acumularam e são constrangidos a deixar para administração transitória de terceiros.


O verdadeiro prazer é decorrente de uma consciência tranquila, de um coração pacificado, que cumpre deveres e estes ofertam paz interior, que nenhuma ocorrência externa pode empanar. Mesmo que falte ao indivíduo o que a outros sobra, este se vê feliz e conformado na carência, por se observar livre de nós e inquietações que a outros devora sem piedade.


Com essa afirmação, não desejamos induzir que deva o ser se apequenar diante das lutas ou se recusar, voluntariamente, a sair da miséria onde nasceu, buscando na luta as ferramentas para melhoria das condições socioeconômicas que lhe são desfavoráveis.


Só não se deixe abrasar pelas rápidas conquistas, como observamos nesses líquidos dias modernos, onde muitos se veem projetados de um instante para o outro na ribalta dos aplausos ou situado na galeria das celebridades fugidias, experimentando um prazer para o qual não construiu resistências morais suficientemente fortes, sucumbindo às mesmas em curto espaço de tempo, arrastado pelo olho do furacão, que o eleva ao Olimpo dos deuses de barro e o traz de volta ao chão do mundo, lhe despedaçando as quimeras.


Dez minutos de prazer e longos meses de algia íntima.


Alguns dias de destaque e permanentes sorrisos, agora sob neblina de lágrimas salgadas.


Centro das atenções de ontem, hoje carpindo dolorosa solidão em casas de saúde mental ou mesmo encarcerado na intimidade doméstica.


O corpo apolíneo e escultural de outrora, abrindo portas largas ao prazer e ao destaque, atualmente reduzido a escombros por motivo de acidentes ou enfermidades degenerativas cruéis.


Sim, tudo passa mais rápido do que podemos imaginar. Em um mundo tomado pela impermanência de tudo que é sólido, imprescindível cuidar das coisas que o transcendam.


Cultivar a vida futura.


Fortalecer as amizades para os anos difíceis.


Regar boa horta nos jardins da alma.


Estender gestos de ternura a quem caminha solitário, ofertar um sorriso aos tristes e valorizar o que muitos desdenham.


Quanta beleza num raio de sol, encantamento numa borboleta-monarca, estesia incomum numa flor de girassol e amorosidade numa lua de prata rasgando, soberana, a madrugada salpicada de estrelas!


Quanto prazer oculto num bom livro! Um reencontro com alguém querido que não víamos a muitos anos.


Viver, um imenso desafio, mas ser feliz custa tão pouco!


Busquemos a conduta do Cristo e entenderemos melhor quando Ele afirmou serem bem-aventurados os injuriados e perseguidos em Seu nome, pois deles é enorme o galardão que meliante algum surrupia, traça alguma devora e nenhuma ferrugem dissolve.


E é para esse Reino que estamos todos em marcha, fazendo do amor nossa estrada para os cimos da vida.


Marta

Salvador, 29.07.2022

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page